“Uma leitura, uma partilha de opinião” é um espaço de partilha entre voluntários e voluntárias da ATLAS. Aqui descobrimos o que andam a ler, quais as suas reflexões e sentimentos. Estão todos e todas convidadas a deixar comentários ao artigo no fim desta página!
Memórias inesquecíveis
Comentário de Celina Gameiro
Residente em S. Simão de Litém, concelho de Pombal. Licenciada em Línguas e Literaturas modernas, variante de estudos franceses e ingleses, pela FLUC. Ouvinte e observadora. Voluntária na Atlas, no projeto Velhos Amigos.
Lembrei-me do meu avô. Podia ter sido por acaso, por qualquer razão, mas foi porque o autor Gao Xingjian tem uma colectânea de contos intitulada Uma cana de pesca para o meu avô. Este é o nome da colectânea e também de um dos contos incorporados. Talvez o mais bonito.
Não é uma ode fantástica. É apenas uma história muito simples de um neto que passou numa loja de artigos de pesca e viu uma cana e lembrou-se do avô. De repente quis oferecer-lhe uma. O avô gostava de pescar e usava exclusivamente canas feitas de bambu, o que há aos pontapés na China, e o neto queria mostrar-lhe um modelo mais moderno e menos artesanal.
O avô é que fazia as suas canas, não eram daquelas que se encaixavam umas nas outras até caberem no último tubinho, facilitando o transporte. Eram de bambu curvado e aquecido até ganharem a cor e a forma apropriadas. Só os carretos e os anzóis é que vinham da cidade. O petiz, já não tão petiz, resolve visitar esse espaço da sua infância onde vivia o avô e achou tão estranha a transformação que o tempo trouxe que já nem sabia onde ficava. Onde havia casas pequenas e ribeiros passou a haver prédios e estradas. Tudo muito homogéneo. As casa todas iguais umas às outras. A paisagem tinha-se alterado completamente.
Quando visito esse altar da minha infância que era a casa do meu avô, onde todos nos reuníamos, vejo que lhe falta a vida e o pulsar de antigamente.
A estrutura ainda se mantem. O pátio também, com as lajes de mármore encaixadas umas nas outras, mas o tempo trouxe uma manta negra que as vai cobrindo e trouxe o silêncio. Mesmo assim, consigo ouvir ruídos quando lá vou. Ouço os passos das corridas da nossa infância, até daquela onde parti um braço. Ouço o baloiço com a fila das primas à espera da sua vez. Ouço as risadas das irmãs à conversa umas com as outras enquanto preparavam os tortulhos. Ouço o aparelho do meu avô a ajustar-se. Ouço os meus tios a desafiarem-se num jogo de sueca. Ouço os pratos que se alinham pela mesa comprida. Ouço os talheres contados a preceito e sem preconceito para quem chega. Ouço os jogos sem fronteiras na televisão sempre com a energia embelezada da figura do Eládio Clímaco. Ouço as mãos que cortam o pão caseiro. Ouço e cheiro os assados que saem do forno a lenha. Lenha de oliveira. Ouço alguém que levanta o moal, mais num registo de brincadeira que já havia debulhadora. O moal era para coisa pouca. Vejo sorrisos estampados, brilhantes e genuínos. Éramos muitos. Éramos meninos.
As memórias e as vivências são tudo o que nos resta.
Uma cana de pesca para o meu avô
de Gao Xingjian
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