Notícias

Solidão


“Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitámos tão pouco.”  Mia Couto

Eis-me aqui, na curva descendente da vida. Passos trôpegos, olho pela janela. O sol estende o seu manto alaranjado, até se esconder para lá do horizonte.

Deixo-me levar até onde a minha memória alcança. Eu pequenina, o mundo eram as ruas da minha aldeia. As estações do ano sucediam-se. Noites de verão em que se contavam estrelas, ouviam-se grilos, andava de bicicleta com a minha irmã, brincava no pátio da escola com as amigas e amigos e chapinhava nas poças da chuva. Lembro-me de procurar os braços da minha mãe nas noites de trovoada. Lembro-me da água gelada no tanque da roupa. Lembro-me, com saudade, da minha família, das pessoas que a vida trouxe e levou. Meu porto seguro. Cartas longas que se escreviam e raras chamadas telefónicas. Um passado cheio de gente, de afetos, dores e saudades.

Cheguei aqui. Pelo caminho houve de tudo. Vitórias, derrotas, aprendizagens. A voragem dos dias a apoderar-se de mim, de quem me rodeava. Planos de vida que se iam sucessivamente adiando. Um amanhã sempre a escapar-se entre os dedos. A família que me resta, telefona-me espaçadamente. Tempo, a eterna desculpa. Os amigos de uma vida foram ficando lá atrás. Os que ainda por cá andam, reféns dos seus passos, aparecem cada vez menos. Deixo de conhecer os meus vizinhos. Eles também não sabem quem eu sou. Talvez nem saibam que eu existo. A porta de minha casa já raramente se abre. A campainha está muda, já não anuncia a chegada de ninguém.

Os meus dias sucedem-se iguais. Tenho os meus gatos e os meus livros. Mas os meus olhos cansam-se rapidamente. Ligo a televisão e ali fico estática, esquecida, perdida no vazio. Recentemente algo começou a mudar. A esperança e a alegria começam a abrir caminho na minha vida. Há pessoas boas, empenhadas em dar algo de si, em derrotar a solidão de quem está só. De quem se sente só. A Dora procura saber como me sinto. Senta-se junto a mim e conversa. Conta como vai o mundo, fala de coisas do dia-a-dia. Fico feliz quando ela abre um livro e lê para mim. Fecho os olhos, deixo-me transportar.  Sinto o calor do sol a bater na minha janela, os gatos enroscados aos meus pés e, nestes momentos, tudo me faz sentido. Gratidão


Autor
Élia Vala

Mãe e avó. Assistente comercial numa instituição financeira. Gosta de pessoas, livros e natureza. Angustia-se com o sofrimento humano, em particular de crianças e idosos. Conhece o admirável trabalho da Atlas pela mão da sua amiga Dora Rodrigues. 

Coloque um comentário