Tem 82 anos e está amargurada numa cama de ferro, afundada no meio do colchão, de onde se levanta com o auxílio do filho de 51 anos, que vive e trata dela. Recebe uma reforma de 260 € e o filho, obeso por força de alguma inatividade e da alimentação possível, faz alguns biscates de construção civil,
Casou e enviuvou prematuramente, aos 36 anos, com seis filhos nos braços e à mesa.
Não sabe ler nem escrever porque, aos 14 anos e no tempo da ditadura, já partia pedra para pavimentar a estrada que vai da Cova ao cimo da serra.
Vive, por ironia, no caminho da Cova de Cima, no mesmo casebre de há 50 anos, com sala de jantar, dois minúsculos quartos inabitáveis, o quarto onde dorme o filho, e a cozinha.
É a construção mais despojada e triste da cidade, com paredes de tijolo simples e telha sobre estrutura de madeira com forro de “platex”. Aos 38 graus no exterior correspondem, pelo menos, 42 no interior. No inverno imagina-se o frio e a humidade.
Mas, nesta crueza, pode ser transportada para uma cadeira no fim dos dias da alta primavera e verão, onde fica a sonhar e talvez chorar, com a belíssima tela do Atlântico quase eterno aos pés.
A infância e a adolescência transformaram-na numa lavradeira à hora, de quinta em quinta, de quintal em quintal, um dos quais foi o dos meus pais, onde aparecia logo de manhã, sorridente, com olhos azuis de outro mundo, chapéu de palha e botas de borracha.
Quando a visito, recorda, com saudades, os meus pais, e fica comovida quando a beijo no rosto marcado por inúmeras feridas do carcinoma de pele de que o chapéu não salvou.
Paga 100 euros de renda por ano e acaba de receber uma carta a atualizá-la para 50 por mês, com a velada ameaça de despejo.
A nossa democracia, de quase meio século, é incompatível com este abandono cruel.
Até sempre Dª Rosa.
Autor:
João Nina
João Nina, nasceu em Angola em 1951. Licenciado em Engenharia Eletrotécnica pelo IST/UL em 1975, pós-graduação em Engenharia Humana pela Universidade do Minho.
Professor do ensino secundário, V.N. de Azeitão. Técnico do GAT do Vale do Lima, da CCDRN e da UM. Sócio-gerente da empresa de engenharia Domotec.
Coloque um comentário